Santo Amaro é uma vila que exala o passado pelas ruas e fachadas, serena, simpática e cheia de história. Agrega em seu currículo, o título de berço da nossa querida Venâncio Aires. Mas você conhece esta riquíssima história? Segue lendo este artigo para desfrutar de um conteúdo recheado de curiosidades.
Aquele pequeno vilarejo que, para muitos, parece ser apenas um destino de veraneio, carrega um rico e longo passado, tendo destaque e participação na história do estado. Comparado ao restante do Brasil, o Rio Grande do Sul demorou a ser “descoberto” pelos brancos europeus. Após ser encontrado, o atual território gaúcho tornou-se alvo de constantes embates entre portugueses e espanhóis.
Com o Tratado de Madrid, assinado em 1750 pelos países ibéricos, novas delimitações foram estabelecidas, considerando que os Sete Povos das Missões — antes espanhóis — passariam a ser território português. Para garantir esse domínio, o comandante português Gomes Freire de Andrade marchou rumo à região missioneira. No trajeto, em um ponto estratégico, foi instalado um fortim e um armazém de munícios e abastecimento para as tropas portuguesas, que tinham como objetivo retirar os jesuítas e indígenas que ali viviam. Agora como parte da coroa portuguesa, o território seria repassado aos imigrantes açorianos que chegavam à província.
Na vila militar, além dos soldados, já havia famílias açorianas alojadas, aguardando a retirada dos povos missioneiros — episódio que culminou na Guerra Guaranítica. Após o massacre dos indígenas, foi assinado um novo tratado: o Tratado de El Pardo, que anulava o de Madrid. Como consequência, os açorianos ficaram espalhados pelo estado, aguardando os lotes de terra prometidos. Assim, foram sendo criados povoados para assentar os imigrantes. É o caso de Rio Pardo, Taquari e, claro, Santo Amaro.
Essas vilas tinham o conhecido “estilo português”, ainda visível hoje em muitas cidades do estado. O planejamento urbano e arquitetônico, chamado de Baixa Pombalina, herdado das cidades portuguesas europeias, traz características marcantes: avenidas largas, ruas em traçado ortogonal (quadriculado), construções padronizadas, grandes praças públicas centrais, entre outros elementos. Inicialmente parte de Rio Pardo e, posteriormente, de Taquari, a antiga vila militar fundada em 1752 passou a ser chamada de Santo Amaro do Sul, tendo sua emancipação de Taquari apenas em 1881.
Com o passar dos anos, Santo Amaro foi berço de figuras notáveis para o estado e para Venâncio Aires. Foi nessa singela povoação que nasceu José Gomes de Vasconcelos Jardim, que viria a ser Presidente da República Rio-Grandense durante a Revolução Farroupilha. A casa deste nascimento, ocorrido em 1773, ainda está de pé e é conhecida como “casa dos bigodes”, apelido dado devido aos enfeites arquitetônicos em sua fachada.
Outro nome vindo dessas terras é o de Thomaz José Pereira Júnior, mais conhecido como Coronel Thomaz Pereira, intendente de Venâncio Aires por três mandatos e que hoje dá nome à Praça da Matriz e a uma escola em Linha Taquari Mirim. Santo Amaro também foi o local de nascimento das netas gêmeas de Francisco Machado Fagundes da Silveira, o primeiro sesmeiro da região onde hoje está localizada a Capital do Chimarrão. Uma dessas meninas era, curiosamente, Brígida do Nascimento, a doadora das terras que deram origem ao centro de Venâncio Aires.
Por meio dos lotes doados por Dona Brígida, foi construída uma capela em devoção a São Sebastião Mártir. Quando essa capela tornou-se curada — ou seja, passou a contar com um sacerdote responsável —, o antigo Faxinal dos Fagundes transformou-se na Freguesia de São Sebastião Mártir. Poucos anos depois, em 1891, a pacata freguesia foi elevada a município, passando a se chamar Venâncio Aires.
Santo Amaro também teve um papel importante devido à sua localização privilegiada. Além de ser uma vila às margens do rio Jacuí, que a conectava à capital gaúcha, recebeu, em 1883, uma estação férrea — a Estação Amarópolis —, inicialmente ligada a Cachoeira do Sul e, anos depois, com extensão até Uruguaiana.
A grande virada na história de Santo Amaro veio com os renovados ares da República Nova, no governo de Getúlio Vargas. Na década de 1930, o gaúcho, então presidente, decidiu criar o segundo Arsenal de Guerra do Brasil, e para isso precisava de uma vila militar. Escolheu-se o distrito de Margem do Taquari, que pertencia a Santo Amaro. Com isso, o distrito foi elevado a município, recebendo o nome de General Câmara, em homenagem ao primeiro governador do Rio Grande do Sul após a Proclamação da República. Já a célebre Santo Amaro foi rebaixada à condição de vila, tornando-se parte de General Câmara e, assim, sendo sufocada e ofuscada nas páginas da história.
A escolha do padroeiro é envolta em mistério. Diversas histórias tentam explicá-la. Há quem diga que os açorianos trouxeram a imagem de Santo Amaro da Europa; outros afirmam que foi uma imposição de Gomes Freire. Uma versão mais folclórica diz que a imagem do santo teria sido jogada no rio, mas retornado de forma inexplicável e mística.
Independentemente da origem, é fato que há uma conexão profunda entre os moradores e o santo. Desde 1787 realiza-se a Festa de Santo Amaro, que se inicia em 6 de janeiro e vai até o dia do padroeiro, 15 de janeiro.
Além dessa festividade, ocorre uma outra celebração religiosa, de caráter leigo — ou seja, sem ligação direta com a Igreja —, organizada pela Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santo Amaro, com registros desde 1815. Essa festa é centrada no culto ao santo e possui até um estatuto que orienta os ritos a serem praticados.
Santo Amaro é uma verdadeira joia da arquitetura, considerada por muitos como um “museu a céu aberto”. Seus prédios — desde moradias até sedes de órgãos públicos — carregam o passado em suas fachadas. Em reconhecimento à sua importância, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tombou parte da vila como patrimônio histórico e artístico nacional em 1998.
O tombamento inclui a Igreja de Santo Amaro e seu largo, a Praça Marechal Câmara e outras 14 construções, como a casa onde nasceu Gomes Jardim e a residência que pertenceu a Chico Pedro, o Moringue — notável militar do Império Brasileiro e conhecido carrasco dos farroupilhas.
A igreja é a principal referência da vila, uma verdadeira obra de arte, retratada inclusive pelo botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. Em "Viagens ao Rio Grande do Sul", ele escreveu:
“Pouco antes de anoitecer, passamos pela Vila de Santo Amaro, sede de uma paróquia. A localidade onde está construída esta aldeia é descampada, mas à direita e à esquerda há matas. A igreja fica no topo de uma colina, e sobre seu declive veem-se pequenos grupos de casas, entremeadas de laranjeiras e gramados.”
Estudos arqueológicos revelaram dezenas de sepultamentos nos arredores e no interior da igreja até o século XIX. Sob o altar-mor, espaço reservado às figuras mais ilustres da vila, encontram-se os restos mortais de padres, do soldado farroupilha Manuel Pedroso e de Rita Menezes de Azambuja — proprietária da primeira casa construída em Santo Amaro, em 1763.
Com suas ruas calçadas pela memória e fachadas lavradas pelo tempo, Santo Amaro não é apenas um ponto geográfico no mapa do Rio Grande do Sul — é um relicário da história, guardião silente dos primórdios de uma terra que viria a se chamar Venâncio Aires. Cada pedra, cada parede antiga, cada celebração transmitida de geração em geração carrega consigo o eco dos que ali viveram, sonharam e moldaram os alicerces do presente. Assim, ao revisitarmos a trajetória de Santo Amaro, não apenas recuperamos os passos do passado, mas também reconhecemos o valor da preservação como forma de eternizar aquilo que o tempo insiste em apagar. Que a memória desta vila continue acesa, como chama que ilumina não apenas o que fomos, mas aquilo que ainda podemos ser.
(Fotos: Renan Zarth/Terra FM)